quinta-feira, 12 de março de 2015

13. Os 13 dias que abalaram o Brasil. Sexta 13 de março de 2015.



Atitude de Jânio surpreendeu o pais l Foto: radiolegalidade.com.br
Rui Felten

Passava do meio-dia de 28 de agosto de 1961 quando o general Machado Lopes, comandante do III Exército, cruzou por uma multidão que encobria a região da Praça da Matriz, entrou no Palácio Piratini e subiu até o segundo andar, onde o governador Leonel Brizola o esperava em seu gabinete. Àquela altura, já corriam dois dias desde que Brizola arrebanhara o Estado e o país na Campanha pela Legalidade, para garantir que o vice-presidente João Goulart fosse empossado na presidência da República no lugar de Jânio Quadros, que havia renunciado no dia 25, uma sexta-feira.
Machado Lopes – todos esperavam — chegava ao Piratini para cumprir ordens do ministro da Guerra, marechal Odílio Dennys, de desarticular a insurreição liderada pelo governador gaúcho. E se fosse preciso, bombardear Porto Alegre.

Machado Lopes para Brizola: "III Exercito não aceita qualquer resolução para a crise fora dos termos da Constituição Federal" l Foto: Acervo Fotográfico do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa
Escoltado por um grupo de generais e coronéis, Machado Lopes – um ex-combatente dos comunistas, em 1935, e dos integralistas, em 1937 — cumprimentou Brizola e, em vez de proferir as esperadas palavras ameaçadoras, atalhou:
- Governador, aqui venho para lhe comunicar que o III Exército, por decisão de seu comandante e de seus generais, decidiu não aceitar qualquer resolução para a crise fora dos termos da Constituição Federal.
Machado Lopes deixou bem claro que não obedeceria mais às determinações do ministro da Guerra. Que continuaria à frente do III Exército. E que lutaria ao lado dos brasileiros que exigiam a posse de João Goulart – o Jango, apelido pelo qual o vice-presidente atendia desde a infância, em São Borja. Começava ali a ir pelos ares a intenção de Odílio Dennys e dos outros dois ministros militares – Sílvio Heck (da Marinha) e Gabriel Grun Moss (da Aeronáutica) – de impedir Jango de governar o país e entregar o poder ao presidente da Câmara Federal, deputado Ranieri Mazzilli – que dirigiu a nação nos dias que antecederam o desfecho do episódio.
Cresce o apoio popular
O jornal “Folha da Tarde”, de Porto Alegre, estampou na edição vespertina daquele 28 de agosto a manchete: “III Exército garante a Constituição – Momentos dramáticos no Palácio”. E a “Última Hora” saiu com a manchete: “Exército aderiu a Brizola”. Surpreso e emocionado, Brizola já tinha anunciado às cerca de 100 mil pessoas que se aglomeravam na Praça da Matriz e imediações, da sacada do Palácio Piratini, que o III Exército aderira ao movimento pela Legalidade.

Ramiro Furquim/Sul21
Fracassado o bombardeio militar, tropas de São Paulo negaram-se a cumprir a ordem de marchar contra o Rio Grande do Sul. Machado Lopes foi conduzido pelo governador ao comando da Brigada Militar. E além de Porto Alegre, onde um Comitê da Legalidade recebia o registro de homens e mulheres que quisessem participar do enfrentamento, alastravam-se pontos de adesão por todo o Estado.
Não é por nada que historiadores definem aqueles dias como “de guerra” em Porto Alegre. Desde a Revolução de 1930 – quando uma mobilização armada envolvendo Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba pôs fim à República Velha e levou Getúlio Vargas a um governo provisório –, o Brasil não assistia a nada parecido.
Rede radiofônica

Do porão do Piratini, Brizola mobilizou o Brasil a favor da posse de Jango l Foto: Acervo do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa
Foi do porão do Palácio Piratini, de onde montou uma rede nacional de rádio, que Brizola incendiou o país contra o golpe à Constituição Federal. Começou ocupando os estúdios da Rádio Guaíba, no dia 26 de agosto, por requisição do Governo do Estado. Logo depois, por obra do engenheiro Homero Simon, a rádio passou a operar do Gabinete de Imprensa, no subsolo do Piratini, e a transmitir para todo o país, em ondas curtas, músicas marciais e notícias sobre o andamento da mobilização. Em seguida, mais de 100 emissoras juntaram-se à cadeia radiofônica da Legalidade. Para assegurar a manutenção da Guaíba no ar, os transmissores instalados na Ilha da Pintada eram guarnecidos permanentemente. Porto Alegre era uma cidade de 635 mil habitantes e com 115.801 aparelhos de rádio. No Estado, viviam 5.388.659 pessoas e havia 530.904 aparelhos.

Desde o início, Brizola esteve decidido a reagir sem esmorecer. “Nem que seja para sermos esmagados”, esbravejava. Do microfone, dizia que o Governo do Estado tinha o dever de assumir o papel que lhe cabia naquela hora grave da vida nacional:
– Cumpre-nos reafirmar nossa inalterável posição ao lado da legalidade constitucional. Não pactuaremos com golpes ou violências contra a ordem constitucional e contra as lideranças públicas. Se o atual regime não satisfaz em muitos de seus aspectos, desejamos é o seu aprimoramento, e não a sua supressão, o que representaria regressão e obscurantismo.
Jango estava em Cingapura no dia da renúncia de Jânio Quadros. Soube da notícia por telefone, enquanto tomava o café da manhã no Hotel Raffles. Acompanhado por uma comitiva de parlamentares, o vice-presidente havia estado antes na China, de onde partiu de Hong Kong para Cingapura. Viajara à Ásia em busca de intercâmbios comerciais para o Brasil.
Na manhã daquele 25 de agosto, em Brasília, Jânio Quadros despachou com assessores e com os três ministros militares, e depois acompanhou o desfile do Dia do Soldado. Perto das 9h30min, escreveu um bilhete (como fazia de costume) para comunicar ao Congresso Nacional a sua decisão de abandonar o governo, dizendo-se vítima de pressão de “forças terríveis”. Sucessor de Juscelino Kubitschek na presidência da República, Jânio foi candidato pela União Democrática Nacional (UDN) e tinha sido eleito há menos de um ano, em 3 de outubro de 1960, com 48% dos votos depositados nas urnas.

No bilhete de renúncia, Jânio fala sobre "forças terríveis" l Foto: pt.wikipedia.org
Era a primeira vez que um candidato apoiado pela UDN chegava à presidência da República. O que mais desagradou a oposição a Jânio foi a aproximação de seu governo aos países socialistas, como a Rússia, com a qual o Brasil reatou relações diplomáticas. Além disso, Jânio condecorou o guerrilheiro revolucionário Che Guevara e o cosmonauta soviético Yuri Gagarin. Como candidato à presidência, havia visitado Cuba, onde se encontrara com o presidente revolucionário cubano Fidel Castro. Enquanto isso, nos setores políticos e econômicos internos, predominava a convicção de que o país deveria estar alinhado aos Estados Unidos. Também faltava a Jânio respaldo político no Congresso Nacional, onde se sobressaíam o PTB e o PSB. Para complicar ainda mais a situação, Jânio se distanciou da UDN e atiçou a ira do governador da Guanabara (atual Estado do Rio de Janeiro), Carlos Lacerda – seu antigo aliado.

Jânio não vem ao Rio Grande
Se a renúncia estarreceu o país inteiro, para os gaúchos o gesto trouxe uma frustração adicional: Jânio era esperado no dia 26 de agosto em Porto Alegre, onde instalaria o governo federal simbolicamente, assistiria à inauguração da Feira de Animais (hoje, Expointer) e a uma partida de Gre-Nal. Depois de deixar o Palácio do Planalto, ele embarcou em um avião com destino a São Paulo e ficou por 22 horas na Base Aérea do Aeroporto de Cumbica. Acredita-se que ele supunha que os brasileiros sairiam às ruas para pedir o retorno dele ao governo ou que os próprios ministros das Forças Armadas encampariam a sua recondução à presidência. Não aconteceu nem uma coisa, nem outra.

Carlos Lacerda: a voz contra Getúlio, Jânio Quadros e João Goulart l Foto: reprodução
Em rede estadual de TV, Carlos Lacerda denunciara, na noite anterior, que o ministro da Justiça, Pedroso Horta, teria levado a ele um convite de Jânio Quadros para participar de um golpe. Mais uma vez, o nome de Lacerda (inimigo político de Getúlio Vargas) rondava uma crise institucional no poder federal. Seis anos antes, ele se juntara a militares e integrantes da UDN em uma tentativa de anular a votação em que Jango elegeu-se vice-presidente da República na chapa encabeçada por Juscelino Kubitschek. A conspiração foi detonada por interferência do general Henrique Teixeira Lott – que foi ministro da Guerra de JK –, em 11 de novembro de 1955.
O mesmo Teixeira Lott foi quem advertiu Brizola de que estava sendo armado um golpe para bloquear a posse de João Goulart no lugar de Jânio Quadros. Em agosto de 1961, ele já estava promovido a marechal. Do Rio de Janeiro – onde foi preso –, repassou a informação por rádio e disse que já havia tentado, em vão, dissuadir o ministro Odílio Dennys da ideia. Teixeira Lott também conclamou “as forças vivas do país, as forças da produção, do pensamento, estudantes, intelectuais, operários e o povo em geral” a tomar “posição decisiva e enérgica pelo respeito à Constituição e à preservação integral do regime democrático brasileiro”. Apelou ainda “aos nobres camaradas de farda” para que honrassem “as tradições legalistas de sua história nos destinos da pátria”.

Teixeira Lott alertou Brizola sobre o golpe que se preparava contra Jango l Foto: reprodução
Em Porto Alegre, as emissoras de rádio foram fechadas em punição por terem veiculado a mensagem. Menos a Guaíba, que não divulgou. Avisado do golpe iminente também pelo deputado federal Rui Ramos, representante do Rio Grande do Sul em Brasília, Brizola entrou em contato com o comandante Machado Lopes, do III Exército:
– General, o senhor não acha que a situação está se agravando? Os ministros militares não querem dar posse ao vice-presidente, e a situação em todo o Brasil, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, está muito tensa. No Rio, o governador Lacerda desencadeou uma onda de repressão, com gente presa e jornais ocupados.
– É, governador, a situação está se complicando — respondeu Machado Lopes.
– O senhor, no que está pensando? — insistiu Brizola.
– Governador, não posso definir-me assim. Sou apenas um soldado. Fico com o Exército — despediu-se o general.
Brizola chama general de golpista
Brizola foi atrás também do comandante do II Exército e de vários outros militares pelo país afora. Com o general Artur da Costa e Silva, comandante do IV Exército, com sede em Recife, foi mais difícil conseguir conversar por telefone. E quando finalmente o oficial atendeu à ligação, Brizola não se sentiu tratado com a cordialidade esperada, mesmo tendo chamado a atenção de Costa e Silva a respeito de sua descendência gaúcha. Dando o assunto por encerrado, Brizola vociferou:
– Está bem. Não vou ligar mais. Mas ouça bem: estou vendo que o senhor nada mais é do que um golpista.

Última alerta sobre o golpe em edição extra l Foto: Ramiro Furquim/Sul21
A manchete de uma edição extra de domingo, 27 de agosto, do jornal porto-alegrense “Última Hora” era: “Golpe contra Jango”. E as primeiras páginas dos jornais de segunda-feira, 28, traziam no título principal a frase de Jango: “Vou voltar para assumir ou morrer”.
Na Praça da Matriz, a multidão aumentava mais e mais. A Brigada Militar multiplicava os efetivos, recrutando policiais no interior do Estado. Baterias antiaéreas protegiam as sacadas do Palácio Piratini e lanchas armadas continuavam vigiando as antenas da rádio Guaíba. O acesso de tropas federais ao Estado era barrado por policiais em prontidão no Litoral. Nas ruas, quem quisesse se juntar aos pelotões civis pela Legalidade recebia armas para entrar na trincheira.

O clima no Rio Grande do Sul era de guerra l Foto: Reprodução
“O clima era mesmo de guerra”, recorda o deputado estadual Carrion Jr. (PCdoB), autor do livro “Brizola – Momentos de Decisão” e, na época, presidente do Grêmio Estudantil Anchietano (GEA), do Colégio Anchieta, em Porto Alegre. Conta Carrion: “As entidades estudantis também estavam mobilizadas, em vigília. Lembro da reunião que a UGES [União Gaúcha de Estudantes] realizou em sua sede, com grande número de grêmios estudantis, quando levei aos colegas as sugestões de mobilização do GEA”. A Legalidade ficou na História, para Carrion Jr., como “uma página memorável, que fez pulsar de forma inesquecível o coração da nossa gente”.
Proposta de impeachment
No instante em que o general Machado Lopes se preparava para ser recebido por Brizola, no Palácio Piratini, e anunciar que estava do lado dos legalistas, não do Exército, em Brasília a Câmara Federal votava uma proposta de impeachment de Jango. A proposição foi derrotada por 300 votos contrários a 12 favoráveis.

Tancredo (D) convenceu Jango a aceitar o parlamentarismo ll Foto: Instituto João Goulart
Tancredo Neves, então deputado federal, combinou, de Brasília, um encontro com João Goulart em Montevidéu. Lá, contaria a Jango sobre uma emenda constitucional que estava sendo encaminhada para instituir o sistema parlamentarista de governo no país. Brizola soube disso pelo próprio Jango. E não gostou. Para ele, o parlamentarismo encolheria o poder do presidente, seria um atraso para conquistas sociais e um fortificante para os golpistas.
Brizola não tinha como sair de Porto Alegre naquela hora. No lugar dele, o jurista Ajadil de Lemos viajou a Montevidéu para se encontrar com Jango e Tancredo. Terminada a conversa, o jurista e o deputado voaram a Porto Alegre, onde a emenda constitucional seria então discutida com Brizola. Tancredo, no entanto, resolveu se esquivar da discordância do governador com o regime parlamentarista e, do Aeroporto Salgado Filho, seguiu para Brasília.
Congresso aprova o parlamentarismo

Jango chega em Porto Alegre no dia 1º de setembro l Foto: reprodução postais PDT
No dia 1º de setembro, uma sexta-feira, Jango desembarcou em Porto Alegre. Mais de 200 jornalistas o aguardavam no Salão Negrinho do Pastoreio do Palácio Piratini. Depois de falar reservadamente com Brizola e o general Machado Lopes, já no Palácio, acenou à multidão. Só que aniquilou o entusiasmo daquela gente toda ao dizer que, antes de qualquer decisão, iria a Brasília consultar os amigos. O aviso foi dado em um texto lido no Salão Negrinho do Pastoreio pelo jornalista Flávio Tavares.
Jango aterrissou em Brasília em 5 de setembro. Há três dias, estava aprovada a emenda que tornava o governo brasileiro parlamentarista. Dia 7 de setembro, Jango fez o juramento como presidente no Congresso Nacional. Um dia depois, Tancredo Neves foi indicado por ele como primeiro-ministro. O parlamentarismo durou até 6 de janeiro de 1963, quando um plebiscito trouxe de volta o presidencialismo, com 9 milhões de votos. Jango governou até 31 de março de 1964. Naquela data, foi definitivamente derrubado pelo golpe que manteve o Brasil sob ditadura militar até 1985.

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