História do PT
"História do PT", de Lincoln Secco (USP) traça um panorama muito bom do surgimento em 1980 e do crescimento do Partido dos Trabalhadores, com sua trajetória rumo a uma agenda reformista social-democrata e um processo de profissionalização - e burocratização - que o afastou de sua base nos movimentos sociais. O livro supre a lacuna da falta de estudos sobre o mundo partidário da redemocratização brasileira, em contraste com as análises já clássicas sobre as siglas do período 1946-1964 (PSD, PTB, UDN).
Secco é integrante do PT e seu ponto de vista é de alguém da ala esquerda do partido, incomodado com os escândalos de corrupção mas também com as guinadas ideológicas. Boa parte das 300 páginas do livro é dedicada aos embates entre os grupos socialistas do PT e correntes que defendem posições mais moderadas e falta uma discussão semelhante sobre as idas e vindas da sigla com a Igreja Católica, fundamental em sua fundação e ocasionalmente uma adversária em conflitos relacionados a temas como aborto, casamento gay e até projetos de infraestrutura como a transposição do rio São Francisco.
O historiador ressalta que o PT foi criado a partir de grupos heterogêneos: sindicalistas, organizações marxistas, intelectuais e católicos de esquerda, políticos oriundos do MDB. Ele frisa que "a diversidade regional e social brasileira criou inúmeros PT diferentes". No Rio de Janeiro, por exemplo, o partido tinha um perfil bem mais ligado à classe média. Boa parte dos anos iniciais é dedicada à organização do PT, e Secco mostra como a idéia inicial de uma gestão interna mais democrática, centrada nos núcleos de base, e se concentrou num modelo mais hierárquico, dependente das contribuições financeiras dos políticos e ocupantes de cargo, e não das doações dos militantes. Nesse ponto, falta um debate com teóricos políticos, como Robert Michels, já que esse fenômeno acontece muito, em diversos países
O autor destaca os vínculos iniciais do PT com o marxismo e sua relação conturbada com a herança política do Partido Comunista Brasileiro e sua conversão na prática - mas não na teoria - à social-democracia: "sua transformação se deu de maneira molecular especialmente durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso". José Dirceu foi essencial como dirigente para comandar essa transição, afirmando após a queda do muro de Berlim que "era preciso abandonar a identidade com o socialismo real, aquele ´cadáver insepulto´". O ponto nunca foi fácil no PT e levou a dissidências das tendências internas de extrema-esquerda, levando à formação do PSTU. Em parte isso também seria importante na criação do PSOL, mas nesse aspecto a corrupção foi igualmente um fator-chave.
Secco faz boa análise das campanhas presidenciais de Lula, culminando com a vitória em 2002 em meio às polêmicas internas pela Carta ao Povo Brasileiro, que setores mais à esquerda chamavam de Carta aos Banqueiros: "O que o PT tinha era um conjunto de políticas sociais e o compromisso cada vez maior de evitar rupturas que afastassem a lucratividade do setor financeiro e uma vaga defesa do mercado interno de massas."
O autor compartilha a visão da esquerda do PT de hostilidade com relação à grande imprensa (às vezes com razão, como nas vergonhosas manipulações da mídia em 1989), mas também tem uma hipótese interessante que explica parte dessa postura: "O PT pareceu muitas vezes ter herdado a técnica do leninismo sem os seus valores, o que deriva do fato de muitos dirigentes da máquina partidária terem sido revolucionários na juventude."
O livro não é uma história do governo Lula, mas naturalmente há a análise do que significou para o PT virar o partido que liderava a coalizão de governo. Secco examina o lulismo como uma aliança na qual a primazia estava no capital financeiro e na população mais pobre, em detrimento da classe média: "Muitas políticas públicas democratizaram as relações com a sociedade civil, o que catapultou lideranças setoriais do partido...Mas como as mudanças não eram velozes nem radicais, o PT tinha o ônus de defender o Governo sem o bônus de ditar-lhes os rumos."
O escândalo do mensalão é bem estudado no livro, com passagens muito boas sobre as reações de vergonha e desilusão entre os militantes, alguns dos quais agredidos nas ruas porque usavam estrela ou camisa do partido. Segundo Secco, os dirigentes pouco fizeram e a ação de Lula foi essencial: "A defesa de um projeto de poder dependia da figura pessoal dele, e não mais do partido, acossado por denúncias." Para o autor, além do prestígio individual do presidente, o que salvou o governo foi o medo da oposição conservadora de um confronto aberto, e sua expectativa de que o PT estaria enfraquecido para as próximas eleições - não de todo inviável, pois a popularidade de Lula chegou a cair a 45%.
Ele deixaria o cargo com mais de 80%, mas o mensalão teve forte impacto, ainda não totalmente compreendido - o mais óbvio foi afastar os dirigentes tradicionais do coração do poder e abrir caminho para Dilma Rousseff, que se filou ao PT somente em 2001. Não há uma discussão no livro sobre o futuro do partido, mas a meu ver ele passa pela reafirmação da tradição da esquerda trabalhista brasileira - inicialmente rejeitada pelo PT, mas cada vez mais aceita. Ao fim e ao cabo, a trajetória petista está ligada menos ao marxismo e mais à herança de Getúlio Vargas, que para o bem e para o mal continua a ditar as referências ideológicas da política do Brasil.
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