Pais de soldado estuprado pedem justiça: “Quando isso acabar, vamos embora”
Igor Natusch
No dia 12 de maio deste ano, um jovem soldado do Parque Regional de Manutenção de Santa Maria completou 19 anos de idade. Não foi um aniversário feliz. Detido no quartel por uma suposta ausência em horário de vigília, ficou à mercê da hostilidade de alguns colegas de farda, proibido de ver os pais e sem receber nem mesmo as mudas de roupa enviadas pela mãe. Cinco dias depois, foi estuprado por quatro soldados, dentro do alojamento, com pelo menos 20 testemunhas silenciosas preferindo fingir o sono a intervir contra a violência. “Esse foi o presente de aniversário que deram para o meu filho”, conta o pai da vítima. Três meses depois do crime, os profissionais que cuidam do jovem violentado acenam com uma possibilidade inesperada: a de que o soldado tenha a idade mental de uma criança, o que faria dele incapaz de prestar serviço militar. Defendendo punição aos agressores, eles esperam por justiça antes de se mudarem da cidade. “Quando isso acabar, vamos embora daqui.”
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O Sul21, que acompanha desde o início o caso do soldado que teria sido estuprado nas dependências de um quartel do Exército, esteve na semana passada em Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul. Na cidade, a reportagem conversou com os pais do jovem de 19 anos e com o advogado da família.
O jovem, naturalmente tímido e reservado, tornou-se um recluso. Só sai de casa acompanhado, para visitar médicos e psiquiatras. Não consegue reter nada no estômago: vomita os alimentos logo após as refeições. O programa em uma rádio comunitária, que apresentava aos sábados à noite, foi abandonado. Mesmo com reiterados convites do responsável, o jovem recusou-se a retornar à emissora, a menos de uma quadra de sua casa.
A família do soldado violentado tem origem simples. O pai é motorista de caminhão. A mãe está em auxílio-doença, depois de trabalhar como operadora de máquina em uma fábrica de alimentos. Investiram boa parte de sua renda na compra de vestimentas para que o filho mais velho pudesse prestar o serviço militar. “É um guri ingênuo, que não vê maldade nenhuma nas coisas”, diz a mãe do jovem. “É uma criança. As duas irmãs dele são bem mais novas e são mais ligadas nas coisas do que ele”.
Hoje, todos vivem praticamente escondidos, fugindo da repercussão do crime em suas vidas. Enquanto isso, os acusados da violência seguem normalmente suas atividades na caserna, aguardando os resultados finais de um arrastado inquérito militar. “Não receberam nem mesmo uma repreensão disciplinar”, lamenta o advogado Diego Strassburger. Para o Exército, o jovem estuprado por quatro colegas é, na prática, mais culpado do que eles.
O primeiro contato do advogado com seu cliente não poderia ter sido mais chocante. O jovem de 19 anos recebeu-o no quarto, cerca de uma semana depois de ser estuprado, com o corpo totalmente coberto por lençóis e apenas parte do rosto aparecendo. Não queria ver e nem ser visto. “Eu sou advogado, leigo em medicina, mas ficou claro para mim que ele estava traumatizado, em estado de choque”, conta.
Punição veio em nome de outro soldado
Desde que entrou para o serviço militar, em fevereiro deste ano, o recruta tornou-se vítima quase imediata de alguns colegas de farda. Passou a ser xingado quase diariamente, acusado de homossexual. Além disso, era forçado a realizar tarefas de outros recrutas, acumulando tarefas. Tímido, calava como uma criança diante dos abusos, ainda que repetisse, em casa, a ideia de deixar o serviço militar. “Durante o dia, os oficiais estavam lá, então ele se sentia mais seguro. De noite, ele ficava desprotegido”, diz a mãe.
O jovem tinha serviço agendado para um sábado. Na segunda-feira, iria a campo, junto com os demais recrutas. Mas todos foram liberados na sexta, inclusive ele. Quando voltou de campo, o jovem recebeu a punição como se tivesse se ausentado do serviço, e não recebido a dispensa. O próprio documento relativo à punição apresenta, segundo os familiares, o nome e assinatura de outro soldado.
“Até hoje a gente não entendeu”, lamenta o pai do recruta. “Uma simples falta de serviço e dez dias de punição? Eu servi como militar e sei que faltar o serviço dava no máximo em um pernoite de fim de semana”. A própria punição provoca dúvidas nos pais. “Ele nunca faltou serviço, nunca. Chegava em casa e já engraxava as botas, ia dormir cedo e levantava todos os dias às cinco da manhã”, garante a mãe.
Ao saber que o filho teria que ficar dez dias no quartel, a mãe levou um pacote com camisetas, meias e cuecas, para que ele pudesse trocar de roupa durante o período. Um pacote que, diz, nunca foi entregue. Durante todo o tempo, mesmo nos primeiros dias após o abuso sexual, o jovem usava sempre as mesmas meias e cuecas, já que não recebeu as mudas de roupa enviadas pela mãe nem teve vestimentas fornecidas pelo quartel.
Após violência, recruta passou a noite em meio aos agressores
Na noite da agressão, os responsáveis pela vigilância pediram que os detidos colocassem suas camas em um dos cantos do alojamento, de forma que todos ficassem em seu campo de visão. Os agressores encostaram os beliches uns nos outros, formando uma espécie de bloco. Também fizeram com que a vítima dormisse entre eles, em uma das camas do meio, sem chance de fugir.
Após fazer a faxina no banheiro, última das tarefas a cumprir naquele dia, o jovem de 19 anos deitou-se em seu beliche e colocou os fones de ouvido. A música impediu que escutasse a movimentação de seus agressores. Foi pego de surpresa, segurado pelos braços e pelos pés, e teve o rosto forçado contra o travesseiro para que não conseguisse gritar.
No momento do estupro, cerca de 20 colegas de caserna estavam no alojamento. Em depoimento a seus superiores, todos eles, juraram estar dormindo enquanto o jovem era violentado. Após ser estuprado durante cerca de 30 minutos ininterruptos, teve que passar a noite em seu beliche, cercado pelos mesmos homens que tinham acabado de violentá-lo.
Só foi conversar com o sargento no dia seguinte. Tomado por medo e vergonha, talvez nem tivesse tomado a iniciativa por si mesmo; os comentários dos soldados, discutindo abertamente o ataque, é que pressionaram o jovem a procurar seu superior e relatar o estupro.
Na sexta-feira, 20 de maio, o jovem soldado passaria pelo ritual da entrega da boina, fundamental para que os recrutas possam andar fardados na rua. Na véspera, ligou para a mãe. “Não precisa ir no quartel amanhã, porque não vou colocar a boina. Eu estou internado no hospital. Passei mal”. O aviso só foi possível porque o soldado levava um celular sempre consigo, escondido no bolso da calça. Foi assim, avisada de forma clandestina pelo próprio filho, que a família soube da internação. Dos militares, nem uma palavra.
“O que dá mais raiva é que estavam nos enganando direitinho”
Dois dias depois, a mãe conversou com sua irmã por telefone. Na conversa, a tia do jovem revelou ter ouvido de um médico que um “soldado ralo” estava no mesmo hospital por ter sido violentado sexualmente dentro do quartel. O médico, um infectologista, soube do caso quando militares foram a seu consultório pedir que ele autorizasse injeções contra doenças sexualmente transmissíveis. O médico se recusou, dizendo que só daria atestado depois de uma consulta com o paciente. Alertado pela mãe, o pai conversou em particular com o filho. “Disse para ele: eu já sei o que aconteceu, só preciso que tu confirme que foi contigo, sim ou não”. Cinco dias depois do estupro, e novamente por meio da própria vítima, os pais finalmente souberam do que se tratava o mal súbito de seu filho.
“Crime sexual deixa vestígios genéticos, mas eles desaparecem rápido”, lembra o advogado Diego Strassburger. “As primeiras diligências são fundamentais, não apenas para determinar o crime, mas para coletar indícios de autoria. Por que deixaram o jovem internado cinco dias sem que nem seus pais soubessem do acontecido, e depois mais alguns dias sem poder deixar o hospital e sem receber esses exames?”, questiona. O exame de lesões corporais, feito dez dias depois do estupro, comprovou a violência, mas foi – previsivelmente – incapaz de oferecer indícios de autoria.
“O que dá mais raiva é que estavam nos enganando direitinho”, revolta-se a mãe do soldado. “Se não fosse esse médico de fora que eles pediram atestado, a gente não ia descobrir, até porque ameaçaram o guri para não contar nada, senão seria pior para ele”. Os pais falaram com um capitão, que pediu ao pai que não se preocupasse: “vamos tratar ele como se fosse nosso filho”. Convenceram os pais, de início, a não ir à delegacia; tudo seria resolvido dentro da caserna.
Jovem prestou depoimento sem presença de advogado
No primeiro depoimento para os militares, no dia 19 de maio, o recruta não estava acompanhado de advogado. No seguinte, menos de uma semana depois, teve a companhia de um representante legal – que, no entanto, não teve oportunidade de conversar com seu cliente antes do depoimento. São esses dois interrogatórios, feitos em estado de choque e sem acompanhamento adequado, que baseiam as conclusões do inquérito que chega nos próximos dias ao Ministério Público Militar. O terceiro depoimento, feito para pequenos esclarecimentos adicionais, só ocorreu quase três meses depois – e foi o único ao qual o atual grupo de advogados teve acesso.
O primeiro dos exames de sorologia feitos no recruta deu positivo para o vírus HIV. O segundo exame e a contraprova, feitos logo em seguida, deram negativo. Mesmo assim, a primeira amostra foi suficiente para que um subtenente usasse a informação em uma discussão com a mãe do jovem. “Ficou falando que meu filho era homossexual, que tinha HIV. Tudo isso no corredor do hospital, com gente passando para lá e para cá. Foi aí que me irritei”, conta a mãe. “Disse que meu filho não era homossexual, que se fosse eu saberia, porque eu criei ele. Que eu queria entrar no quarto e perguntar para ele se ele era homossexual, que se ele tinha confirmado para o subtenente, ele confirmasse para mim também”. Foi quando a mãe foi ameaçada de prisão, por estar desacatando uma autoridade dentro de instalação militar.
Segundo os pais, os militares só ofereceram assistência psicológica e psiquiátrica depois que o caso chegou à imprensa. O pai conversou com a psicóloga cedida pelos militares apenas uma vez. “É essa a assistência deles”, ironiza. A psicóloga designada pelo quartel já deu alta para o jovem, enquanto a psiquiatra reduziu as consultas para uma vez por mês.
Jovem seria incapaz de prestar serviço militar
Durante o acompanhamento psicológico e psiquiátrico do caso, os especialistas contratados pela família começaram a suspeitar que o jovem pode sofrer de atraso mental. Ainda não confirmada, a hipótese dos profissionais que o atendem é de que a timidez e retraimento do jovem soldado sejam consequência de uma idade mental de 10 ou 11 anos. Ou seja, o jovem seria incapaz de prestar o serviço militar, o que os exames de admissão do Exército falharam em detectar. Além disso, a descoberta explicaria o comportamento do jovem soldado antes e principalmente depois da violência sexual. “Estamos esperando a chegada de um laudo bem completo que solicitamos para confirmar essa possibilidade”, disse Diego Strassburger.
Comprovada a suspeita, os advogados da família ingressarão na Justiça comum contra o Exército e a União. Restará, então, o processo na Justiça Militar – onde o jovem estuprado pode até ser arrolado como réu, e não como vítima. Isso ocorrerá caso o procurador responsável acolha a provável conclusão do inquérito: de que o que ocorreu na noite de 17 de maio não foi uma violência sexual, e sim um crime de pederastia. Ou seja, os cincos recrutas teriam feito sexo de forma consentida, sendo todos igualmente culpados no que já foi qualificado como “brincadeira” por alguns oficiais. “Posso acabar virando advogado de defesa, por mais absurdo que isso possa parecer”, declara o advogado da família.
No início dessa semana, uma junta militar se reunirá para discutir o caso. Os familiares temem que seja tomada uma decisão que, a julgar pelas últimas ações do Exército, já está se desenhando: a de que o recruta seja convocado a voltar imediatamente ao trabalho no quartel. Outras opções preveem colocar o jovem para trabalhar diretamente com o general Sérgio Etchegoyen, comandante da 3ª Divisão de Exército, ou ser deslocado para atividades internas no hospital de guarnição. “Ele ficaria resguardado, é o que dizem. Mas que tipo de resguardo ele teria nesse caso? Ficará estigmatizado”, critica o advogado da família.
Família pensa em deixar Santa Maria
“Nem que ele quisesse eu poderia deixar ele sair sozinho, no estado que ele está”, acrescenta a mãe. “O que ele quer é ir embora de Santa Maria, do jeito que for”. Os próprios pais do soldado passam pela mesma situação – transformados junto com o filho em culpados da violência que desestabilizou toda a família. “Fomos ao quartel no dia do depoimento dele, e todos ficaram olhando para nós. Um deles ficou me encarando”, diz o pai.
“Aqui no Brasil, a lei é porca”, desabafa a mãe. “Se eles forem presos, ficam na cadeia alguns meses e já estão soltos de novo. Vou saber o que vão fazer com meu filho se encontrarem ele na rua? Quando isso acabar, o que eu quero é ir embora daqui”. O pai concorda, dizendo que só não foram embora porque as duas filhas, de 7 e 8 anos, precisam terminar o ano letivo.
Mesmo assim, o pai do soldado violentado por colegas dentro da caserna garante que não desistirá antes que se faça justiça. “Mexeram com as pessoas erradas”, garante ele. “Mexeram com o meu filho, e agora eu vou até o fim. Quero a cabeça deles em uma bandeja, ou então eu mesmo vou buscar.”
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