domingo, 10 de abril de 2011

O Código Florestal Brasileiro escamoteia uma reforma agrária

Mauro Márcio Oliveira*
No relatório final sobre o Código Florestal Brasileiro (CFB), preparado pelo deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB-SP), derivado do PL 1876/1999, as pequenas propriedades rurais são poupadas da aplicação dos rigores da conservação ambiental. O argumento central do relator é que essas propriedades, tipicamente familiares, já pequenas, seriam totalmente inviabilizadas com as restrições ambientais propostas. Concordando com o argumento, pergunta-se: qual foi a solução adotada pela relatoria? A de isentar as pequenas propriedades da aplicação da restrição ambiental.
Devo dizer, porém, que esse encaminhamento escamoteia uma bela reforma agrária, quase revolucionária no contexto do capitalismo, se é que alguma coisa pode ser revolucionária sob o capitalismo.
Digo isso porque o Brasil ainda insiste em colocar todo o peso da reforma agrária no polo do latifúndio (1). Por isso mesmo, o Estado brasileiro encontra-se numa fase de total incerteza intelectual e ideológica sobre que caminho tomar nesse particular. Se conseguisse abrir os olhos para o futuro, o país já estaria fazendo uma reforma agrária por meio da agregação de minifúndios, o que seria uma reforma agrária com a cara do Brasil. Se o fizesse, passaria a criar propriedades aumentadas, compatíveis com a formação de uma classe média no campo, o que é tudo de bom para a sociedade e para o meio ambiente. Porém, nesse campo o que se tem visto ao longo da história é a prevalência do laissez-faire no mercado de terras, que multiplica os minifúndios. Por sua atitude, o Brasil, tanto faz: ou continua deitado no berço esplêndido da apatia ou indo em direção ao futuro com os olhos colocados no retrovisor da história.
Entendo até que a solução encontrada pelo relator seja compatível com a ideologia do PCdoB, seu partido, arcaico e sem sentido no mundo de hoje. Porém, o triste é perceber que estão irmanados na defesa da tese do relator, o governo, a oposição, os sindicatos de proprietários e de trabalhadores rurais, todos igualmente assessorados por estudos da Embrapa (2). Aí, sim, o desânimo é quase total.
Por isso, não se pode escapar de uma conclusão provisória: trata-se de uma solução conveniente a todos; agrada a grande maioria dos pequenos agricultores; assegura um ‘tratamento social’ à questão do minifúndio; consegue o apoio da bancada ruralista, ainda que venha a criar certo atrito com os ambientalistas, ainda que eles nunca demonstrassem amor pelos aspectos fundiários que cercam a questão. Por fim, segundo o relator, o menor rigor aplicado aos pequenos agricultores ‘aperfeiçoa’ o CFB e representa uma ‘solução razoável’. Ele está certo se disser: ‘aperfeiçoa’ o atraso e representa uma ‘solução razoável’ para o continuísmo.
A meu juízo, trata-se de mais um caso ao qual cabe aplicar a expressão inglesa don’t ask, don’t tell. Esse ‘princípio’ encontra duas conhecidas aplicações. Nas Forças Armadas norte-americanas, os recrutas não declinam sua orientação sexual nem os oficiais lhes perguntam a respeito. Isso acomodou ali a situação dos gays e lésbicas. No mundo dos negócios, uma parte não declara a origem do dinheiro e a outra não pergunta de onde vem. Com isso, dinheiro sujo engendra negócios honestos. Proponho a terceira aplicação à isenção dos pequenos agricultores do rigor do CFB porque ninguém pergunta nem ninguém diz o que sua aprovação representa para a estrutura fundiária brasileira.
O tratamento de exceção prescrito para o meio ambiente na pequena propriedade não dará nenhum up grade à questão ambiental, mas, em contrapartida, contribuirá para preservar uma das mais graves concentrações de terra rural do mundo. Tenho de confessar que, diante dos desafios do futuro, o Brasil, às vezes, se rende ao prazer da coceirinha que o bicho de pé do atraso lhe traz.
(1) O Governo Lula anuncia ter assentado 614 mil famílias entre 2003 e 2010. Porém, segundo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, 26,6% dessas famílias já viviam e produziam onde o Governo Lula as contabilizou como incremento; outras 38,6% daquele universo já ocupavam lotes abandonados em áreas de reforma agrária então existentes. Dessa forma, o Governo Lula teria assentado apenas 211 mil famílias no referido período (os números são de “A reforma agrária de Lula”, O Estado de São Paulo, 6 de março de 2011, p. A3). A redução do ímpeto de assentamento é coerente com o crescimento extraordinário das operações de crédito rural pelo PRONAF e pela expansão (inclusive legal) do serviço de extensão rural. Tudo considerado, o Governo Lula trocou a ‘política agrária’ pela ‘política agrícola’ no caso dos agricultores familiares; isto é, voltou ao modelo liberal de meados do século passado que tanto criticou.
(2) Segundo estudo da Embrapa, os produtores familiares serão os mais beneficiados com essa orientação (ver Zanatta, Mauro. Produtores familiares serão os mais beneficiados. Valor Econômico, 6/4/2011, p. A7)

*Mauro Márcio Oliveira trabalha com economia política, economia agrária, regional e planejamento, tendo mestrado e doutorado em Economia
Originalmente publicado no Congresso em Foco.

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