A mãe de Jaqueline Nunes, Elenir, foi uma das pessoas presas após o tristemente notório incidente na Praça da Matriz, em 1990, quando uma violenta tentativa de dispersar agricultores resultou na morte de Valdeci de Abreu Lopes, cabo da Brigada Militar. O fato marcou o MST, que a partir dali passou a ser visto por muitos como uma organização criminosa — imagem que, para vários setores, segue intocada. “Foi uma coisa que marcou muito”, admite Jaqueline, em um dos poucos momentos em que seu olhar desvia do interlocutor e volta-se para o vazio.
Sete pessoas foram presas pela morte de Valdeci. Durante anos, a versão oficial foi de que, agredido por uma foice, o cabo teria atirado a esmo uma ou duas vezes antes de tombar morto. Mais tarde, os autos do processo relevaram outra versão: a de que o golpe fatal teria sido provavelmente uma atitude de defesa, após os disparos, já que uma pessoa golpeada na artéria carótida perde os sentidos quase que imediatamente.
Dos sete presos, a mãe de Jaqueline foi a única mulher. Aparentemente, nenhum dos que assumiram a responsabilidade estava de fato envolvido no crime. Ao levarem a culpa pela morte do policial militar, eles seguiram o princípio do MST de não personalizar ações. Elenir Nunes foi uma das pessoas baleadas por Valdeci — vítima dos tiros, acabou transformada pelo inquérito em culpada de assassinato.
O confronto na Praça da Matriz acabou marcando decisivamente a relação entre Jaqueline Nunes e a mãe. A filha evita detalhes, não se aprofunda na história, mas admite que pouco viu Elenir nos anos de prisão e que passou a ser filha de “duas famílias”. Hoje, ela tem uma terceira família: a própria. Seu marido trabalha longe, voltando apenas nos finais de semana; seu filho passa a maior parte do tempo na escola ou sob os cuidados da madrinha. Enquanto isso, Jaqueline trabalha em nome do MST, ajudando outras famílias a colocar um fim na caminhada em busca de terra.
“Diziam que eu ia chegar aqui para plantar sapo”
“Chega de caminhar”, disse Doroti Carpes, após anos de marchas e acampamentos. Ela e o marido participaram da marcha até São Gabriel, que cruzou o Rio Grande do Sul em 2003, e permaneceram durante três anos e meio em um pré-assentamento em São Borja. “Era marcha e marcha, luta e luta. A gente parava de caminhar já de noite; os pés ficavam inchados”, conta ela. Depois de tanto andar, Doroti resolveu abraçar a chance e vir até Eldorado do Sul. “Diziam para mim: mas tu vai para lá para plantar sapo! E eu disse que não tinha problema: vou plantar sapo se precisar”, lembra, rindo.
Chegando ao assentamento, a água acabou se mostrando, de fato, um problema. Devido ao solo úmido do banhado, demorou muito tempo até que se encontrasse o lugar mais adequado para levantar as casas. “A gente levantava um barraquinho, dava uma chuva e já alagava tudo”, lembra Doroti. Jaqueline explica que, no início, a divisão por lotes não levava em conta as áreas secas, e as casas se espalhavam de forma desigual pelo assentamento. Depois de um tempo, os assentados e o Incra chegaram a uma conclusão: era impossível levantar casas em determinados pontos do terreno. Atualmente, as casas são erguidas em trechos específicos, próximas umas das outras. “São áreas que não alagam” explica ela. “A limpeza dos valos e a criação de canais acabaram drenando bastante, por isso é seco… Antes, qualquer chuva e era água pelo joelho, em qualquer lugar”.
Vinda da região norte do estado, Marli Malinoski chegou ao assentamento mais de um ano depois da primeira divisão dos lotes. Esteve no Rio de Janeiro, fazendo parte de um projeto chamado “solidariedade e formação nas áreas de reforma agrária”. Embora estivesse concorrendo a outras áreas mais próximas de onde moram seus familiares, Marli acabou sendo chamada para o Apolônio de Carvalho, e resolveu não deixar a chance passar. No momento, ela é uma das poucas pessoas a morar sozinha no assentamento.
No momento, existem cinco lotes ainda não ocupados no Apolônio de Carvalho. Geralmente, o MST tem seus próprios critérios para definir quem vai ganhar a terra — participação nas marchas e ocupações, tempo de acampamento, situação familiar. Porém, o Incra resolveu criar regras para disciplinar essa escolha. Regras que não parecem agradar muito os moradores do assentamento. “Hoje, aplicam um questionário”, conta Marli Malinoski. “Querem saber se tem experiência em plantio de arroz, carteira assinada de trabalho em várzea. Quem é sem terra não tem carteira assinada, é gente que trabalhou em granja e não tem como comprovar”, reclama.
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